Por que a luta pelo Direito à Cidade só é genuína se for antirracista?

A pobreza brasileira tem cor e é preta

 

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A pobreza brasileira tem cor e é preta

Beatriz Carmo 18 Nov 2017

Diversos dados mostram que, no Brasil, existe racismo, sim. Precisamos, negros e brancos, combater efetivamente esse problema tão antigo quanto profundo Atualmente no Brasil, as favelas são fragmentos do período pós escravidão.

Os negros foram excluídos e expulsos da sociedade principalmente pela ausência de políticas públicas efetivas que permitissem a verdadeira inserção dessas pessoas no convívio social. A pobreza nunca foi somente questão de classe. Gênero e raça sempre a envolveram.

Conforme dados apontados por Rita Izsák, relatora especial das Organizações das Nações Unidas sobre questões de minorias, os negros brasileiros correspondem a 70,8% de todos os 16,2 milhões que vivem atualmente em situação de extrema pobreza. Conforme dados do IBGE, em 2014, 76% dos mais pobres no Brasil são negros, número que aumentou muito se comparado com 2004, em que o número estava em torno de 73%. Miriam Leitão se referiu uma vez ao Brasil como “a pátria distraída” por não ser capaz de perceber o próprio racismo, mas que se comove com histórias que envolvem outras nações, principalmente a americana.

Ela diz que “a ausência dos negros nos eventos onde está a elite, de qualquer área, não incomoda os brasileiros. E porque tantos não veem essa ausência, podem continuar dizendo com conforto que o racismo brasileiro não existe. São os que dizem que nós apenas discriminamos os pobres. E falam isso sem pejo, sem sequer se dar conta do preconceito que a frase embute”.

Os olhos se acostumaram a ver pessoas não negras ocupando lugares de poder, mas os donos desses olhos insistem em não questionar o fato de que 54% da população brasileira é negra (segundo o IBGE) e que não vivem em uma sociedade representativa, não são protagonistas de campanhas publicitárias, não ocupam cargos bem remunerados e estão cada vez mais longe dos centros urbanos. Conforme dados coletados pela organização social TETO Brasil nas favelas de São Paulo, em 2016, 70% de seus moradores são negros, incluindo os que se autodenominam pretos e pardos. A pobreza tem cor e o que mais ameaça os negros que vivem nessa situação de vulnerabilidade em favelas é o genocídio silenciado.

TODOS OS ESTEREÓTIPOS QUE ENVOLVEM POBREZA, CRIMINALIDADE E FALTA DE INSTRUÇÃO SÃO LIGADOS À POPULAÇÃO NEGRA

A cada 23 minutos um jovem negro é morto no Brasil, conforme CPI do Senado sobre o Assassinato de Jovens. Fillipe dos Anjos, secretário geral da Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro, diz que diariamente ocorrem genocídios da juventude negra e favelada em razão da ausência de reconhecimento por parte do Estado, mas ao mesmo tempo vem aumentando conforme o cenário de crise e atuação da polícia em suas operações.

Conforme apontado pela BBC Brasil, dos 30 mil jovens assassinados no Brasil, 77% são negros. Está na hora da população brasileira deixar de se espantar com as notícias internacionais e perceberem como sobrevivem as pessoas nas favelas das nossas cidades.

Dados do InfoPen (Sistema Integrado de Informações Penitenciárias) mostram que os negros compõem 60% da população carcerária do país. Faz-se necessário pensar no contexto social e na relação que existe entre vulnerabilidade e marginalidade, mas o estigma da criminalidade está associado à cor da pele do indivíduo. Basta perguntar a um homem negro e a um não negro se ele já foi abordado pela polícia simplesmente por estar andando na rua; se as pessoas atravessam a rua antes de cruzar a calçada com ele à noite; se já foi perseguido por um segurança de uma loja e até mesmo se já teve seu órgão sexual como temática de piadas de crimes sexuais. São estigmas herdados desde o tempo da abolição da escravidão e também pela ausência de políticas públicas efetivas para a real inserção da população negra na sociedade.

Em 2018, o Brasil completa 130 anos da abolição, mas só se desfizeram as amarras materiais; na psique da sociedade, elas ainda existem. Ser negro no Brasil é algo extremamente particular, cada um tem suas vivências e percepções. O autoconhecimento da negritude tem implicações sem volta no intelecto de uma pessoa negra, a militância requer força e coragem de se reestruturar diariamente. Lázaro Ramos no livro “Na Minha Pele” reflete sobre a seguinte questão: “é bom ser negro no Brasil?”. Ele expõe que não é possível generalizar em razão da perspectiva que cada um tem do que é “bom”. Mas o negro brasileiro não sabe o que é viver e ser protagonista. E sempre precisa ser forte e resistir ao que vier. “Tanto é que o que mais se diz ao falar da luta negra é da necessidade de resistir. Ter que resistir sem existir é simplesmente mais uma crueldade sem tamanho”.

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Por que a luta pelo Direito à Cidade só é genuína se for antirracista?

 

Por que a luta pelo Direito à Cidade só é genuína se for antirracista?

Arte: Representação de Tereza de Benguela – Instituto Póli

Por que a luta pelo Direito à Cidade só é genuína se for antirracista?

QUESTÕES URBANAS – uma coluna do IBDU e do BrCidadesPor Jéssica Tavares

Dia 25 de Julho é o dia nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, líder quilombola que resistiu por mais de 20 anos aos ataques da coroa, na região de Mato Grosso, onde hoje é a atual cidade de Cuiabá.

O nome é, segundo a ex-senadora e autora do texto Serys Slhessarenko, uma forma de criar um ícone para as mulheres negras do país. “É preciso criar um símbolo para a mulher negra, tal como existe o mito Zumbi dos Palmares. As mulheres carecem de heroínas negras que reforcem o orgulho de sua raça e de sua história”, afirmou ex-senadora e autora do textSerys ao site da Câmara dos Deputados.

no Viva Favela

“Rainha Tereza”, como ficou conhecida em seu tempo, viveu na década de XVIII no Vale do Guaporé, no Mato Grosso. Ela liderou o Quilombo de Quariterê após a morte de seu companheiro, José Piolho, morto por soldados. Segundo documentos da época, o lugar abrigava mais de 100 pessoas, com aproximadamente 79 negros e 30 índios. O quilombo resistiu da década de 1730 ao final do século. Tereza foi morta após ser capturada por soldados em 1770 – alguns dizem que a causa foi suicídio; outros, execução ou doença.

Sua liderança se destacou com a criação de uma espécie de Parlamento e de um sistema de defesa. Ali, era cultivado o algodão, que servia posteriormente para a produção de tecidos. Havia também plantações de milho, feijão, mandioca, banana, entre outros.

Governava esse quilombo a modo de parlamento, tendo para o conselho uma casa destinada, para a qual, em dias assinalados de todas as semanas, entravam os deputados, sendo o de maior autoridade, tido por conselheiro, José Piolho, escravo da herança do defunto Antônio Pacheco de Morais. Isso faziam, tanto que eram chamados pela rainha, que era a que presidia e que naquele negral Senado se assentava, e se executavam à risca, sem apelação nem agravo”
(Anal de Vila Bela do ano de 1770)

Após ser capturada em 1770,  o documento afirma: “em poucos dias expirou de pasmo. Morta ela, se lhe cortou a cabeça e se pôs no meio da praça daquele quilombo, em um alto poste, onde ficou para memória e exemplo dos que a vissem”. Alguns quilombolas conseguiram fugir ao ataque e o reconstruíram – mesmo assim, em 1777 foi novamente atacado pelo exército, sendo finalmente extinto em 1795.

Injustiças centenárias

Números do IBGE apontam que ser mulher negra no Brasil significa sofrer com uma intensa desigualdade, como no campo profissional por exemplo. 71% das mulheres negras estão em ocupações precárias e informais, contra 54% das mulheres brancas e 48% dos homens brancos. O salário médio da trabalhadora negra continua sendo a metade do salário da trabalhadora branca. Mesmo quando sua escolaridade é similar à escolaridade de uma mulher branca, a diferença salarial gira em trono de 40% a mais para esta.

A história da “Rainha” foi relembrada em 1994 pela escola de samba Unidos da Viradouro no samba-enredo “Tereza de Benguela, uma rainha negra no Pantanal”.

Você já se perguntou onde e como vivem as mulheres negras nas cidades? Qual é a cor das pessoas que moram em favelas e cortiços? Quem são as pessoas que mais dependem dos serviços públicos de transporte, saúde, educação? Quem são as principais vítimas das violências urbanas, de gênero e de LGBTfobia? Seja por parte do Estado, ou de civis?

O Direito à Cidade está na moda. Seja para reivindicá-lo, seja para fazer coro de que este é um privilégio de homens héteros brancos. Mas o que eu, mulher negra, tenho a ver com isso?

Historicamente, o Direito à Cidade foi construído em uma perspectiva anticapitalista, se opondo ao fato de que o dinheiro é o fator determinante para ditar a nossa qualidade de vida nas cidades brasileiras. Ou seja, o Direito à Cidade atuou na contramão de transformar o seu direito em mercadoria. Mas nem faz tanto tempo que ganhou força a concepção da cidade como um bem comum e, consequentemente um direito de todos, que por si só ofereça bens e serviços de forma democrática e justa.

Ações afirmativas para mulheres negras no Brasil

A mercantilização das cidades, que basicamente significa ou você compra, ou você não tem, é em si bastante perversa e acarreta em barreiras sociais quase intransponíveis. Como por exemplo, onde e como morar. As condições de moradia no Brasil são extremamente precárias para a maior parte da população, sobretudo para a negra, que foi empurrada para as margens das cidades em um projeto de urbanização racista e excludente. É importante compreender a centralidade da moradia em nossas vidas, porque via de regra ela atua como porta de entrada para  outros direitos. Quem não tem lugar, não é privado apenas do teto, mas também de uma localização, de um endereço, que nos possibilita a mínima condição da vida cidadã. O onde, também é tão importante quanto em quais condições moramos, em um contexto que a nossa localização nos deixa mais distantes ou mais próximos da realização de sonhos.

Além da moradia, as condições de mobilidade, o acesso aos equipamentos de educação, saúde pública, lazer e cultura, saneamento, e a ocupação dos espaços públicos também são determinantes para ditar o que você pode ou não fazer com o seu tempo. Parece até complexo demais conectar tudo isso, mas na realidade, acho que muitas mulheres negras possuem memórias do que não tiveram acesso pela violação do Direito à Cidade.

 

Quando eu era pequena, minha mãe me alertava para tomar muito cuidado ao brincar na rua porque nós não tínhamos dinheiro para pegar ônibus para ir ao médico, caso eu me machucasse. Pode parecer um problema de planejamento financeiro/familiar, mas na verdade a denúncia é que a mobilidade para alguns é barreira e não uma ponte, e que os equipamentos públicos, como postos de saúde e escolas, não estão concentrados onde as mulheres negras estão.O encadeamento do racismo estrutural

 

Também me lembro de que as velhinhas da favela tinham quase sempre os mesmos problemas respiratórios. Anos depois, descobri que as doenças das velhinhas tinham mais a ver com anos e anos morando em casas com muita umidade, pouca ventilação, combinadas com descidas e subidas cotidianas em terrenos íngremes, e  horas e horas para chegar no trabalho, do que apenas com o fato de serem velhinhas.

 

Para muitos de nós negros, isso nunca foi um grande mistério, porque aprendemos política urbana vivendo. No entanto, apesar de algumas coisas parecerem óbvias, elas são complexas, profundas e por muito tempo foram desconsideradas, como por exemplo, a compreensão interseccional das desigualdades. Basicamente isso significa compreender que as pessoas vivem as mazelas da violação do Direito à Cidade diferentemente de acordo com sua raça, gênero e classe.

 

Olhar para os territórios e enxergar sujeitos que vivenciam as desigualdades urbanas de formas desiguais é uma potência no fortalecimento de uma política urbana justa. Histórica e institucionalmente o Brasil tem dívidas com as mulheres negras e são muitos os passos para avançar nesse sentido. No que tange o desenvolvimento  urbano, é preciso compreender que o capital não é a única nem a maior força opressora sobre nossas vidas – somos, antes, atravessadas por violências de raça e de gênero. As políticas e práticas anti-patriarcais e antirracistas devem ser, portanto, valores estruturantes do Planejamento Urbano que tenha, de fato, como perspectiva a cidade como um bem comum. Não existe Direito à Cidade genuíno que não seja anti racista porque não existe bem comum que não seja de fato para TODAS.

 

Estamos dando os primeiros passos para assumir que as mulheres negras são o grupo mais vulnerável em termos de acesso e para encarar e transformar essa realidade. Para a conquista do Direito à Cidade, precisamos contar as histórias apagadas e transformar as consciências para gerar práticas descolonizadoras.

 

Nessa perspectiva precisamos atuar considerando as muitas reparações históricas urgentes, entre elas está o resgate da memória de um Brasil em que a historiografia não conta, que é de resistência e liderança de mulheres negras neste e por este país.

 

Dia 25 de Julho é o dia nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, líder quilombola que resistiu por mais de 20 anos aos ataques da coroa, na região de Mato Grosso, onde hoje é a atual cidade de Cuiabá. O quilombo de Quariterê, além de possuir seu próprio parlamento de processos decisórios, era autossustentável, praticando atividades de cultivo de algodão e tecido. Tereza e o Quilombo resistiram até meados de 1770, onde viveram livres mais de 100 quilombolas, entre negros e indígenas num território construído como um bem comum para todos.

Saudamos sua memória.

Que histórias as cidades não contam?

População negra e saúde: por que debater?

“Há uma morte negra que não tem causa em doenças; decorre de infortúnio. É uma morte insensata, que bule com as coisas da vida, como a gravidez e o parto. É uma morte insana, que aliena a existência em transtornos mentais. É uma morte de vítima, em agressões de doenças infecciosas ou de violência de causas externas. É uma morte que não é morte, é mal definida. A morte negra não é um fim de vida, é uma vida desfeita […]”(BATISTA; ESCUDER; PEREIRA, 2004, p.635)

O parágrafo acima, retirado de um importante estudo sobre as causas de óbito segundo a raça no estado de São Paulo, retrata um cenário que há muito vem mobilizando os movimentos sociais negros: as iniquidades observadas nas condições de saúde da população negra brasileira. Em uma trajetória longa – que, deve-se frisar, sempre teve seus primeiros passos dados pelo movimento negro civil – vem-se tentando estabelecer dados e informações em saúde que justifiquem os achados de trabalhos como o supracitado.

A população negra representa, não apenas a maior parte da população brasileira, segundo o último censo do IBGE, como também representa a grande maioria dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS): 76% dos atendimentos e 81% das internações no SUS são de usuários negros e negras. Também é essa população que figura entre as piores condições socioeconômicas: maiores taxas de analfabetismo, menores salários, piores condições de habitação e acesso a saneamento, por exemplo.

Então, não seriam esses fatores suficientes para justificar as piores condições de saúde dentre a população negra? A resposta é não. Diversos estudos que estratificam dados por renda ou escolaridade demonstram que as desigualdades em saúde permanecem mesmo dentre grupos socioeconomicamente semelhantes, ou seja: a raça, por si só, é um fator determinante da saúde. Em um estudo clássico sobre discriminação salarial, Soares revela que, se a discriminação de raça e gênero fosse extinta, mulheres negras ganhariam 60% mais; mulheres brancas 40% mais; e homens negros 10 a 25% mais.

As iniquidades são reveladas nas mais diversas esferas da saúde. Não se tem, neste artigo, a intenção de detalhar todos esses números; porém, alguns dos mais relevantes dados são aqui listados: nas capitais brasileiras, a taxa de mortalidade materna é cerca de 7 vezes maior entre mulheres negras em relação às brancas; negras e negros morrem 3 vezes mais por tuberculose; o número de consultas pré-natal é menor e a taxa de peregrinação em maternidades é maior para mulheres negras; o risco de morte antes dos 5 anos por causas infectoparasitárias é 60% maior em crianças negras; o risco de morte por desnutrição é 90% maior entre crianças negras; as taxas de mortalidade por AIDS são o dobro para mulheres e homens negros.

Chamam atenção ainda os dados em saúde mental: negras e negros estão mais vulneráveis à dependência a álcool e drogas ilícitas, bem como apresentam maiores índices de sofrimento psíquico e figuram entre as maiores taxas de suicídio. Nos Estados Unidos, por exemplo, entre adolescentes negros e negras de 15 a 29 anos, suicídio chega a ser a terceira causa de morte.

A violência também não pode ser esquecida: 53,4% dos mortos por homicídio em 2012 eram jovens, dos quais 77% negros. Os últimos mapas da violência revelam tendência a queda no número de homicídios na população branca e aumento de homicídios na população negra. Na população jovem, entre 2002 e 2012, a taxa cai 28,6% para brancos e aumenta 6,5% para negros. A taxa de vitimização aumentou de 73% em 2002 para 146,5% em 2012 (ou seja, morreram proporcionalmente 146,5% mais negros que brancos). Entre as mulheres, a taxa de homicídios aumentou 19,5% para as negras e caiu 11,9% para as brancas. Para alguns pesquisadores, a violência pode ser vista como um instrumento ideológico de controle populacional através da eliminação de certas populações.

Mas, mais importante que qualquer porcentagem ou dado duro, a saúde de negras e negros é influenciada diretamente pelas experiências de discriminação vivenciadas ao longo da vida e seus efeitos subjetivos. Na psicologia social, compreende-se que o racismo impacta na vida do ser humano a partir do momento em que limita o desenvolvimento do seu ‘espaço potencial’. É necessário um ambiente ‘bom o bastante’ para que o indivíduo desenvolva suas potencialidades dentro do que a vida e a cultura lhe apresentam.

O racismo institucional, caracterizado como um fracasso coletivo das organizações e instituições em prover serviços iguais a grupos raciais diferentes, é o racismo que extrapola as relações interpessoais e está enraizado em todas as esferas da nossa sociedade. Revela-se, por exemplo, em um fato curioso: nenhum dos sistemas de informação em saúde sequer contava com o quesito raça/cor até poucos anos atrás. O “piloto” da introdução desse quesito nos sistemas de informação em saúde foi o SINASC (Sistema de Informação de Nascidos Vivos), em 1996. Até os dias atuais, sistemas como o SIAB (Sistema de Informação em Atenção Básica) não possuem quesito raça/cor.

Mais perverso que o descaso com a produção de informação entre as variáveis raça e saúde é o fato de que, naqueles sistemas que contam com o quesito raça/cor, frequentemente os dados gerados são inutilizáveis porque em sua maioria são ignorados pelo profissional de saúde que os preenche.

O mito da democracia racial brasileira, muitíssimo bem pensado e arquitetado dentro de um processo histórico favorável, baseado na concepção de embranquecimento e eugenização que culminaria no anunciado “novo homem nacional”, não só permite a perpetuação do ciclo opressor e racista, como faz os esforços de deter esse ciclo parecerem desnecessários. Ele invisibiliza o racismo estrutural vivenciado diariamente por negras e negros, justificando que somos todas e todos iguais, propagando a ideia de harmonia racial.

Na contramão deste processo que vem se perpetuando há tantos anos, e baseada nos dados levantados até então, que apontavam diferenças significativas nas condições de saúde da população negra, foi aprovada em 2006 a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), lançada em 2009 pelo Ministério da Saúde. Essa Política, dada como um marco de uma longa caminhada, nada mais é do que o caminho para atingir um dos princípios do Sistema Único de Saúde: a equidade. É um engano acreditar que equidade significa oferecer o mesmo serviço a populações em situações de saúde diferentes. Ao contrário, para que a real equidade seja alcançada, deve-se obedecer ao princípio de justiça redistributiva, ou seja, definir meios devidamente adequados às populações vulneráveis e marginalizadas para que os fins alcançados sejam os mesmos: o cuidado integral e o bem-estar.

A PNSIPN, uma política afirmativa, que visa a reparar iniquidades históricas e atuais, tem, para alguns pesquisadores, cunho pedagógico, à medida que fomenta o debate da temática racial na saúde e insere essa pauta na academia e no dia-a-dia dos profissionais. Mas, como toda política afirmativa, sofre críticas dos que acreditam se tratar de um “privilégio”. Essa ideia reproduz processos discriminatórios através de discursos que pregam a justiça e a igualdade, porém se opõem às políticas que visam a atingir de fato esse fim.

Enfim, estudar e debater saúde da população negra é, não só essencial e necessário, como também simbólico: significa dar voz àquelas e àqueles que sempre estiveram às margens das políticas públicas. Na saúde, área que abriu os olhos para essa temática tardiamente, as questões raciais revelam a mais nua e crua realidade de um país racista, em que vidas negras continuam, diariamente, sendo desfeitas.

Atlas da Violência: Brasil tem 13 homicídios de mulheres por dia, e maioria das vítimas é negra

Protesto em SP em 2016 pedindo combate à violência contra a mulherDireito de imagemAG BRASIL
Image captionProtesto em SP em 2016 pedindo combate à violência contra a mulher; dados apontam que essa violência tem se agravado no país

Tainara da Silva de Aquino tinha 25 anos quando foi morta a tiros na casa onde morava com seus dois filhos bebês, em Santa Maria (RS), no dia 9 de maio. Seu ex-companheiro foi preso sob suspeita de ter praticado o crime.

O caso resume algumas das principais características dos homicídios de mulheres no Brasil. Segundo os dados do Ministério da Saúde compilados pelo Atlas da Violência, lançado na quarta-feira (05/06) pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), foram registrados 4.936 assassinatos de mulheres em 2017.

É uma média de 13 homicídios por dia, o maior número em uma década.

Assim como Taianara, a maior parte das vítimas (66%) é negra, é morta por armas de fogo e, em boa parte dos casos, dentro de casa.

O Atlas da Violência traça um cenário calamitoso de homicídios. Houve um recorde de 65.602 assassinatos registrados no Brasil em 2017, em sua maioria vitimando jovens homens em episódios de violência urbana e briga entre facções criminosas.

Mas, ao mesmo tempo, geram especial preocupação os assassinatos de mulheres, negros e pessoas LGBTI+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais).

Uma análise geral dos homicídios por raça, por exemplo, mostra que, dos assassinatos cometidos em 2017, três quartos das vítimas eram negras.

Questões de gênero

No que diz respeito às mulheres, o Atlas calcula que aumentou em 20,7% a taxa nacional de homicídios femininos entre 2007 e 2017.

imagem ilustrativa da silueta de uma pessoa atrás de um vidroDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionCerca de 40% dos homicídios femininos registrados no Brasil em 2017 ocorreram dentro de casa

Esse aumento se dá sobretudo entre mulheres negras: elas viram seu número de homícidios crescer mais de 60% em uma década, em comparação com um crescimento de 1,7% nos assassinatos de mulheres não negras.

Quando analisados os dados específicos de 2017, descobre-se que das quase 5 mil mulheres assassinadas, 53,8% foram mortas com armas de fogo e 26,8% com objetos cortantes.

Desde 2015, o Brasil tem uma lei específica para enquadrar homicídios cometidos contra mulheres que envolvam questões de gênero – a Lei do Feminicídio, com penas de 12 a 30 anos de prisão.

Como a lei é relativamente nova, ainda não se sabe se todos os casos de violência de gênero estão sendo devidamente registrados pelas autoridades.

No entanto, o fato de quase 40% das mortes femininas terem ocorrido dentro de casa faz com que sejam grandes “as chances de que se relacionem a casos de feminicídio”, apontam o Ipea e o FBSP.

Outro detalhe importante é que grande parte do aumento dos casos se deu em alguns dos Estados do Norte e do Nordeste. O Ceará, por exemplo, registrou 71,6% de crescimento de homicídios de mulheres em uma década; no Rio Grande do Norte, o aumento foi de 48%.

Segundo Renato Sergio de Lima, presidente e pesquisador do FBSP, “as mortes por brigas interpessoais estão crescendo, (…) como parte de uma cultura da violência sendo incentivada como forma de resolver conflitos. E no Nordeste estão mais arraigadas questões de gênero, de machismo e do papel de homens e mulheres”, favorecendo a violência por questões de gênero.

Nesse cenário, o relatório é crítico à flexibilização do porte de armas, promovido por decreto pelo governo de Jair Bolsonaro em maio.

“Considerando os altíssimos índices de violência doméstica que assolam o Brasil, a possibilidade de que cada vez mais cidadãos tenham uma arma de fogo dentro de casa tende a vulnerabilizar ainda mais a vida de mulheres em situação de violência”, diz o estudo do Ipea e do FBSP.

O estudo aponta que, só em 2017, mais de 221 mil mulheres procuraram delegacias de polícia para registrar agressões (lesão corporal dolosa) em decorrência de violência doméstica, “número que pode estar em muito subestimado dado que muitas vítimas têm medo ou vergonha de denunciar”.

Protesto pelos direitos LGBTI em São Paulo, em setembro de 2017Direito de imagemAFP
Image captionProtesto pelos direitos LGBTI+ em São Paulo, em setembro de 2017; essa população está mais visível e ativa, mas também mais vulnerável à violência

Violência contra LGBTI+

Pela primeira vez, o Atlas da Violência debruçou-se sobre as denúncias de crimes violentos relacionados a orientação sexual e identidade de gênero. E identificou que, embora o problema seja largamente invisível às estatísticas oficiais, os poucos dados existentes indicam que esse tipo de violência também tem se agravado.

O Atlas usou como base dados obtidos no Sinan, sistema de dados do Ministério da Saúde, e no Disque 100, central hoje vinculada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e que recebe denúncias de violências diversas, inclusive contra a população LGBTI+.

O Disque 100 registrou no ano retrasado 193 denúncias de homicídio, 26 de tentativa de homicídio e 423 de lesão corporal contra essa população.

“Como a base de dados do Disque 100 é produzida a partir de denúncias telefônicas, não há como garantir que a variação apontada reflita decisivamente a variação do fenômeno da violência contra a população LGBTI+”, ressalva o relatório.

“Contudo, quando comparamos com algumas informações do Sinan, encontramos um mesmo resultado qualitativo: o aumento das violências contra a população LGBTI+ sobretudo após 2016.” Esses registros do Sinan apontam aumentos superiores a 10% nos registros de violência contra homossexuais e bissexuais entre 2015 e 2016.

Para Lima, do FBSP, esses aumentos provavelmente se devem tanto à redução da subnotificação quanto ao contexto maior de violência do país.

“Essa população LGBTI+ está mais visível e mais ativa, mas a violência contra ela também tem crescido”, afirma.

 

Fonte:

http://www.justificando.com/2019/07/25/por-que-a-luta-pelo-direito-a-cidade-so-e-genuina-se-for-antirracista/

Leia também:

Ações afirmativas para mulheres negras no Brasil

O encadeamento do racismo estrutural


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Sobre bbraga

Atuo como professor de química, em colégios e cursinhos pré-vestibulares. Ministro aulas de Processos Químicos Industrial, Química Ambiental, Corrosão, Química Geral, Matemática e Física. Escolaridade; Pós Graduação, FUNESP. Licenciatura Plena em Química, UMC. Técnico em Química, Liceu Brás Cubas. Cursos Extracurriculares; Curso Rotativo de química, SENAI. Operador de Processo Químico, SENAI. Curso de Proteção Radiológica, SENAI. Busco ministrar aulas dinâmicas e interativas com a utilização de Experimentos, Tecnologias de informação e Comunicação estreitando cada vez mais a relação do aluno com o cotidiano.

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