‘Quem a polícia defende? De que lado está?’, questiona autor de foto símbolo da desigualdade no Brasil
No início de 2004, o fotógrafo Tuca Vieira, que trabalhava no jornal Folha de S.Paulo, recebeu a tarefa de fotografar alguns pontos da capital paulista para um caderno especial sobre o aniversário de 450 anos da cidade, comemorado em 25 de janeiro.
Por Leandro Machado, da BBC
Um dos locais escolhidos foi o encontro entre Paraisópolis, segunda maior favela do município, e o rico bairro do Morumbi.
Tuca não imaginava, mas a imagem que ele fez naquele dia viraria um retrato e símbolo da desigualdade no Brasil. De um lado, um prédio luxuoso, com quadras de tênis e piscinas na varanda dos apartamentos; do outro, centenas de barracos de alvenaria se espremendo em uma geografia típica de uma favela brasileira. No meio, um muro separando os cenários, como se fossem duas cidades diferentes.
A fotografia rodou o mundo e foi exposta no tradicional museu Tate Modern, em Londres. Até hoje, ela é utilizada para ilustrar textos e reportagens sobre as desigualdades econômica e social.
Ainda que Vieira reconheça a imagem como “resultado de uma busca de uma vida inteira”, ele diz também que ela representa uma “atualidade insuportável”.
“É muito triste constatar a atualidade dessa fotografia e saber que daqui a 15 anos ela vai continuar atual. Eu gostaria que ela deixasse de ser um retrato do Brasil em algum momento”, afirmou à BBC News Brasil.
Nessa semana, a foto voltou a ser compartilhada depois que nove jovens morreram em um baile funk que toma as vielas de Paraisópolis semanalmente.
As mortes ocorreram durante uma operação da Polícia Militar. Segundo a corporação, os agentes entrataram no local para perseguir supostos criminosos. Por outro, vídeos publicados na internet mostram policiais agredindo jovens rendidos em becos da favela. Nos dias seguintes, os policiais foram afastados da rua, e o episódio está sendo investigado.
Em entrevista à BBC News Brasil, o fotógrafo Tuca Vieira, mestre em arquitetura e urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de inúmeras séries sobre cidades do mundo, contou como sua fotografia de Paraisópolis ficou famosa e o que faz dela um retrato da desigualdade entre ricos e pobres no Brasil.
Hoje com 45 anos, Vieira tem uma série de trabalhos sobre arquitetura e urbanismo na capital paulista e outras cidades do mundo.
Confirma os trechos da entrevista.
BBC News Brasil – Como essa foto surgiu?
Tuca Vieira – Eu trabalhava na Folha na época. Era aniversário de São Paulo, que estava fazendo 450 anos. Fiz um voo de helicóptero para fotografar vários lugares da cidade para um caderno especial.
A Marlene Bergamo, uma fotógrafa muito importante, estava editando esse caderno. Ela me sugeriu esse lugar, dizendo que tinha essa situação interessante. Eu mesmo não tinha ideia do que era.
BBC News Brasil – Era uma reportagem sobre Paraisópolis?
Vieira – Era uma matéria sobre habitação. O caderno era dividido em temas: habitação, segurança, saúde. A foto foi publicada no caderno, grande. Depois me disseram que o Otávio Frias (ex-diretor de Redação da Folha, morto em 2018) pediu para publicar na capa do jornal. Foi uma coisa muita rara: a mesma foto sair duas vezes na mesma edição.
BBC News Brasil – Suponho que você não imaginava que ela ganharia essa repercussão e que viraria uma imagem tão simbólica da desigualdade no Brasil… Como a foto cresceu e ficou famosa?
Vieira – Ela foi descoberta por uma publicação inglesa de urbanismo, chamada Urban Age. Uma vez que caiu na mão desses ingleses, ela ficou conhecida no mundo.
BBC News Brasil – Mas no dia em que ela foi publicada na Folha, a foto teve essa repercussão toda? As pessoas comentaram?
Vieira – Sim, teve uma grande repercussão. Mas quando ela caiu na mãos dos estrangeiros, ganhou uma nova interpretação. O estrangeiro olha para essa foto e não acredita nela. A gente se choca um pouco menos. Então, essa dimensão que ela teve começou quando houve uma circulação fora do país.
BBC News Brasil – O que ela significou para sua carreira?
Vieira – Curiosamente, ela é um motivo de orgulho, pois eu consegui denunciar uma situação que, para mim, era e ainda é a mais importante do Brasil: a desigualdade social. Então, fiquei muito orgulhoso.
Mas, ao mesmo tempo, há uma contradição: eu gostaria de jamais ter feito essa foto.
BBC News Brasil – Por quê?
Vieira – Porque eu gostaria que essa situação não existisse.
BBC News Brasil – Você já escreveu que essa foto “enche um pouco o saco”. Por quê?
Vieira – Escrevi isso faz tempo. Sempre fui um fotógrafo de cidades, de arquitetura, de questões sociais. Coloco essa foto não como uma exceção na minha carreira, mas como o resultado de uma busca de uma vida inteira. Ela parecia ser mais importante do que todo o resto do meu trabalho. Na época, eu não queria ser marcado por uma foto.
Hoje, acho que criei uma série de outros trabalhos importantes e ela já não me enche o saco como antes.
BBC News Brasil – Há um texto interessante sobre você na internet em que fala: ‘Esse é o cara que fez aquela foto’.
Vieira – Não era só por uma questão de vaidade. Foram anos para chegar a essa foto. Não foi um golpe de sorte. Há fotógrafos que acertaram uma foto na vida e foi isso. Nunca achei que fosse o caso.
Ela é um ponto alto de uma busca.
BBC News Brasil – A foto foi feita em 2004, quando havia um otimismo em relação à ascensão social dos mais pobres, principalmente por meio do consumo. Por outro lado, sua foto mostrava que o problema era mais complexo. Nessa semana, ela ressurgiu nas redes sociais depois de um episódio de violência. O que você sente olhando pra ela hoje?
Vieira – Quinze anos depois, essa foto é de uma atualidade insuportável.
Ela é do início do governo Lula. Havia esperança de que a desigualdade poderia diminuir e, de fato, ela diminuiu um pouco.
Mas, o que a gente nota hoje é que a desigualdade brasileira é ancestral e tem raízes muito profundas. É muito triste constatar a atualidade dessa fotografia e saber que daqui a 15 anos ela vai continuar atual. Eu gostaria que ela deixasse de ser um retrato do Brasil em algum momento.
Depois do que aconteceu em Paraisópolis nessa semana, olhei para a foto e me perguntei: quem a polícia está defendendo? De qual lado ela está? Fica muito claro que ela está protegendo um lado só.
BBC News Brasil – Houve alguma reação por parte dos moradores da comunidade e do prédio quando a foto foi publicada?
Vieira – O pessoal da favela adorou. As pessoas ficaram muito felizes com a notoriedade que a foto deu para a favela, pois ela mostrava a dificuldade da vida deles. Fui convidado para dar palestras e workshops na comunidade. Até hoje sou amigo do pessoal.
Do lado do prédio, eu realmente não sei. Sempre quis ir lá, visitar os moradores.
BBC News Brasil – Você tentou entrar no prédio?
Vieira – Nunca tentei, mas já sondei a possibilidade. E imagino que eles não gostem muito, porque a foto colocou eles como vilões da história, digamos assim.
Há uma curiosidade ali: o prédio das varandas é anterior à favela. A comunidade cresceu depois.
Outra história interessante, que eu gostaria muito de contar, é que as pessoas que trabalham nesses prédios do Morumbi moram em Paraisópolis. O porteiro, a faxineira…
A leitura rasa e fria da foto mostra um efeito simbólico: o muro que divide o pobre do rico. Mas se você olhar com mais cuidado, vai ver que os ricos, bilionários, a elite financeira do país, não são as pessoas que moram naquele prédio dos anos 70.
Essas pessoas ficaram marcadas pela foto, mas elas não correspondem exatamente o que a imagem simboliza.
BBC News Brasil – Tem outro contraste interessante: as ruas de Paraisópolis têm uma vida fervente, gente andando, comércio cheio, motos, funk nos carros, cultos nas igrejas. Parece uma cidade à parte. Já o Morumbi é o contrário: ruas vazias, muros altos, as pessoas dentro de casa, dezenas de mansões abandonadas com placas de ‘aluga-se’…
Vieira – Isso é interessante, porque eu tirei a foto de helicóptero, distante. A foto é bonita esteticamente falando, ela é harmônica, agradável de ver. Mas é uma ilustração.
A realidade do chão é outra. O massacre (morte dos 9 jovens) que ocorreu ali é uma prova disso.
BBC News Brasil – Por outro lado, Paraisópolis e Morumbi são inseparáveis. Impossível falar de um sem lembrar do outro. Na sua opinião, como o Morumbi entra em Paraisópolis?
Vieira – Faz tempo que não vou lá. O que sei, do ponto de vista do Morumbi, é que Paraisópolis é um lugar indesejado.
BBC News Brasil – Aquele prédio mostra o luxo, a ostentação da riqueza. Anos depois, com ascensão da chamada classe C, surgiu nos bairros pobres uma vertente de funk chamada curiosamente de ‘ostentação’: garotos, em sua maioria pobres, que saem de uma certa invisibilidade por meio do consumo, valorizando esse poder da compra. Você acha que essas duas coisas conversam?
Vieira – Esse talvez seja o ponto de encontro desses dois lados. À medida em que vivemos em um país capitalista, cujo valor das pessoas é avaliado pelo que elas têm, é natural que o objeto de consumo seja uma forma de ascensão social. E isso ocorre com o pobre e com o rico. Os desejos são parecidos.
Talvez, se o rapaz da favela tiver oportunidade, ela vai querer morar lá no prédio com piscina também.
BBC News Brasil – Nas suas andanças como fotógrafo em São Paulo e outras cidades, você chegou a encontrar alguma imagem parecida com aquela de Paraisópolis?
Vieira – Honestamente, nunca encontrei algo com tanta clareza e evidência. A realidade é que o rico, na medida do possível, vai querer se afastar do pobre. Normalmente, as duas classes se separam uma da outra.
Um caso como esse, de um muro separando como um poder simbólico, é raro. O muro é uma construção arquitetônica, mas ele é uma metáfora mais clara da ideia de separação e de intolerância.
O Rio de Janeiro tem mais essa situação, do morro e do asfalto. Em São Paulo é mais raro.
BBC News Brasil – Você já comentou que as pessoas acreditavam que a foto era uma montagem de Photoshop…
Vieira – Não é só uma dificuldade de acreditar na veracidade da foto, mas é difícil de aceitar a existência dessa situação.
BBC News Brasil – Ela passa um sentimento de derrota, não?
Vieira – Exato, como chegamos nesse ponto, não é? Um país rico, uma cidade rica, e essa situação? É uma espécie de derrota da humanidade permitir uma coisa dessas.
BBC News Brasil – Você imagina quantas vezes ela foi compartilhada?
Vieira – Não dá para saber exatamente. Mas ela circula bastante em livros acadêmicos, de fotografia, de urbanismo, provas de vestibular. Isso oficialmente. Já na internet não dá para saber. Há uma grande apropriação (da imagem), e eu adoro. O objetivo do fotógrafo é esse: quero que as pessoas falem dessa situação e do Brasil.
Justiça autoriza soltar suspeita de injúria racial sob fiança de R$ 10 mil Natália Dupin, em liberdade provisória Imagem: Reprodução/TV Globo Daniel Leite Colaboração para o UOL, em Juiz de Fora (MG) 07/12/2019 15h23Atualizada em 07/12/2019 18h44 Erramos: este conteúdo foi alterado RESUMO DA NOTÍCIA Natália Burza Gomes Dupin, 36, foi presa na quinta-feira acusada de ofensas racistas contra um taxista Ela terá direito à liberdade provisória, com restrições, como comparecer mensalmente perante a justiça Opção de pagamento da fiança foi proposta pela juíza Roberta Chaves após audiência de custódia Dupin foi autuada em flagrante depois de dizer a um taxista que “não gosta de negros… – Veja mais em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/12/07/advogada-presa-em-caso-de-racismo-em-bh-e-solta-apos-fianca-de-r-10-mil.htm?cmpid=copiaecola
Onde estão os direitos de crianças e adolescentes negros?
A perfeita redação do artigo 227 da Constituição Federal de 1988, ao conceder prioridade absoluta aos direitos de crianças e adolescentes, inaugura a doutrina da proteção integral no país. A falha se encontra na sua aplicação, que não considera as categorias de raça, gênero, classe e cultura que afetam a sociedade brasileira desde a mais tenra idade, especialmente para crianças e adolescentes negros, quilombolas, ribeirinhos e de populações tradicionais.
Por Mayara Silva de Souza e Pedro Mendes*, do Prioridade Absoluta
O mês de novembro, desde o assassinato de Zumbi dos Palmares, em 1695, é marco para toda população brasileira, em especial para a população negra e quilombola. As categorias de raça e cultura tem marcado estruturas em nossa sociedade de uma maneira bastante violenta, que exclui e limita a participação, existência e o direito das pessoas negras, em especial de crianças e adolescentes. Os desafios enfrentados por esta população nos mostram que as relações de sucesso são muito mais sobre oportunidades do que sobre determinação. A história da escravidão ainda diz, e vai dizer por muito tempo, sobre como as pessoas negras, seus planos, sonhos e vidas são vistas e tratadas. E essa lógica está presente desde o começo da vida, e até mesmo antes dele, quando, por exemplo, mulheres negras recebem menos assistência ao pré-natal e ao parto.
A efetivação da absoluta prioridade dos direitos de crianças e adolescentes ainda é um desafio a ser enfrentado por todos atores sociais, mas se torna ainda mais complexa quando olhamos para a situação de crianças e adolescentes negros, que vivem, majoritariamente, nas regiões mais vulneráveis da cidade, são os mais atingidos pela baixa qualidade do ensino no país e pela desigualdade de renda, são as principais vítimas de homicídios; e são maioria nos sistemas socioeducativo e prisional.
Neste contexto, é fundamental assegurar que todas as mãos estejam livres para amparar crianças e adolescentes negros de maneira acolhedora e livre de violências. O espaço em que a população negra se encontra faz surgir questões fundamentais como: de que maneira devemos agir para garantir o direito a prioridade absoluta dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes negros?
Precisamos reconhecer que a implementação efetiva do artigo 227, e de toda doutrina da proteção integral, é condicionada ao reconhecimento dessas desigualdades fruto do racismo estruturante da sociedade. Contudo, importante lembrar que: se crianças e adolescentes negros são encontrados nos piores cenários que a infância e a juventude podem enfrentar, é a partir deste lugar que eles estabelecem lutas e resistências.
Assim, para que possamos falar em uma efetivação plena do artigo 227 é preciso questionar qual a posição das crianças negras na sociedade? Como elas se posicionam nesse lugar social? E como podemos reverter tal cenário? Uma dessas respostas se encontra na estruturação de políticas públicas e de um sistema de justiça sensível, acessível e amigável para crianças e adolescentes negras, que seja antirracista, isto é, que reconheça as desigualdades sociais e a violência perpetuadas pelo racismo e as combata não apenas formalmente, mas de maneira ativa.
Por fim, o que se deseja é que este novembro negro não nos deixe esquecer que criança é feita para brincar, sorrir e sonhar. Romper o ciclo da infância e adolescência com o racismo é esvaziar a humanidade do que há de mais bonito.
*Mayara Silva de Souza é advogada do programa Prioridade Absoluta, do Instituto Alana. Pedro Mendes é estudante de direito e estagiário do programa Prioridade Absoluta.
O importante não é vencer todos os dias, mas lutar sempre.