É o próprio povo que se escraviza e se suicida quando, podendo escolher entre ser submisso ou ser livre, renuncia à liberdade e aceita o jugo; quando consente com seu sofrimento, ou melhor, o procura.
— Étienne de La Boétie[1]
Durante o século XVI, em algum ponto entre seus 16 e 18 anos, Étienne de La Boétie escreveu o “Discurso da Servidão Voluntária”[2]. La Boétie perguntava-se como um único tirano poderia manter sob o seu jugo milhares de homens e dezenas de cidades. Como resposta, ele propõe que os próprios homens, por hábito, ignorância e fraqueza moral, voluntariamente se submetem à tirania. Um pequeno número deles obtém a confiança do tirano e dele se aproxima, compartilhando de seus desmandos e recebendo seus favores. Esse pequeno número de homens dispõe de seus próprios súditos, que também compartilham de seus desmandos e recebem seus favores. Esses súditos mantêm uma série de subordinados, os quais, por sua vez, possuem também seus próprios subordinados.
Formam-se, destarte, relações de favorecimento e obediência em múltiplos níveis ou instâncias. Todas essas instâncias controlam a malta ignorante pela força e, principalmente, pela enganação das políticas de “pão e circo” e dos discursos religiosos e supersticiosos que envolvem o tirano em um manto de devoção. Tece-se assim uma rede de favores e concessões, em que um homem deve obediência a outro, em uma teia cuja ponta leva, em última instância, ao tirano. Ao cabo, os súditos são subjugados uns por meio dos outros. O tirano se mantém tirano porque os próprios súditos se mantêm servis. A servidão, paradoxalmente, é voluntária.
É impossível ler La Boétie sem nos questionarmos sobre a nossa própria situação pós-moderna e sobre os limites de nossa liberdade. Até que ponto somos livres? É óbvio que, em nossa sociedade pretensamente democrática, não cabe continuarmos falando do tirano absolutista de La Boétie — ainda que a descrição da dinâmica das relações de favorecimento e obediência seja assustadoramente atual em nosso sistema político fortemente patrimonialista. Mas seria esta a única forma de tirania?
Byung-Chul Han, no opúsculo “Sociedade do Cansaço”[3], discute a ascensão de um novo paradigma social, em que a sociedade disciplinar de Foucault é substituída pela sociedade do desempenho. Esse novo modelo social é movido por um imperativo de maximizar a produção. Nós, sujeitos de desempenho, somos constante e sistematicamente pressionados a aperfeiçoar nossa performance e aumentar nossa produção.
A crença subjacente, segundo Han, é a de que nada é impossível. Nós podemos fazer tudo. Estamos constantemente pressionados por um poder-fazer ilimitado. É um excesso de positividade, que se constitui em verdadeira violência neuronal — uma violência que não parte do outro, mas que é imanente ao sistema.
E por isso produzimos. Produzimos até a exaustão. E, mesmo cansados, continuamos produzindo. Uma meta é sempre substituída por outra. A tarefa nunca acaba. É frustrante e esgotante. O resultado é uma sociedade que gera fracassados e depressivos, a quem só resta recorrer a medicamentos para continuar produzindo mais eficientemente. Eliane Brum[4] capta muito bem esse sentido da sociedade do cansaço:
Estamos exaustos e correndo. Exaustos e correndo. Exaustos e correndo. E a má notícia é que continuaremos exaustos e correndo, porque exaustos-e-correndo virou a condição humana dessa época. E já percebemos que essa condição humana um corpo humano não aguenta. O corpo então virou um atrapalho, um apêndice incômodo, um não-dá-conta que adoece, fica ansioso, deprime, entra em pânico. E assim dopamos esse corpo falho que se contorce ao ser submetido a uma velocidade não humana. Viramos exaustos-e-correndo-e-dopados. Porque só dopados para continuar exaustos-e-correndo.
Mas por que insistimos em continuar correndo, mesmo exaustos? Por que nos submetemos a tamanha violência psíquica? Onde está o tirano que nos obriga a continuar correndo quando nossos corpos estão gritando por um momento de pausa?
É nesse momento que Byung-Chul Han encontra Étienne de La Boétie: nós, exaustos e dopados, continuamos correndo voluntariamente. Alçados a empresário de nós mesmos, responsáveis e culpados por tudo o que nos acontece, nós nos coagimos a sermos cada vez mais eficientes. No século XVI, La Boétie denunciava a servidão voluntária aos governos tiranos; o homem submetia-se voluntariamente à coação do tirano; e o tirano era o outro. Na sociedade do cansaço de Han, nós somos tiranos de nós mesmos. Longe do que se poderia esperar, “[a] queda da instância dominadora não leva à liberdade. Ao contrário, faz com que liberdade e coação coincidam”[5]. Somos levados — ou melhor, entregamo-nos — à “liberdade coercitiva” ou à “livre coerção” de maximizar o desempenho. Enquanto empresários de nós mesmos, somos ao mesmo tempo exploradores e explorados, agressores e vítimas, senhores e escravos do trabalho. “Essa autorreferencialidade gera uma liberdade paradoxal que, em virtude das estruturas coercitivas que lhe são inerentes, se transforma em violência.”[6]
O instigante paradoxo de La Boétie, portanto, mantém-se e sofistica-se. A liberdade encontra novas formas de coerção, oriundas não mais de fora, mas sistematicamente imposta a nós e por nós. Na superatividade incessante de nossa condição de exaustos-e-correndo-e-dopados, nos quedamos passivos. Sem tempo para parar, contemplar, pensar ou criar, não chegamos nem a perceber nossa servidão voluntária pós-moderna — ainda que sintamos todos os seus efeitos. Como então podemos deixar de ser servos na sociedade do desempenho?
Na França de La Boétie, a monarquia absolutista foi deposta quando, no contexto da revolução francesa, o terceiro estado (burguesia) tomou consciência de sua condição de servidão voluntária e decidiu dela libertar-se. Foi esse ímpeto que inspirou as famosas palavras do abade Sieyès:
Nós temos três questões para nos fazer.
1º O que é o terceiro estado? — TUDO.
2º O que ele tem sido até o presente na ordem política? — NADA.
3º O que ele exige? — SER ALGUMA COISA.[7]
É bem verdade que, no século XVIII, a revolução sangrenta levou os tiranos à forca. Na França, a guilhotina, literalidade da morte do tirano, foi símbolo da morte da tirania. Mas, se o tirano do Estado absolutista vestia coroa, cetro e todos os símbolos do poder, podendo ser imediatamente identificado, o tirano da sociedade do desempenho não tem rosto. Ou melhor, o tirano da sociedade do desempenho só ganha um rosto quando nos olhamos no espelho. Como então matar a tirania da sociedade do desempenho quando o tirano somos nós mesmos?
Talvez a lição da revolução francesa para os homens exaustos-e-correndo-e-dopados seja a tomada de consciência. O primeiro passo para conseguirmos superar a livre coerção é nos percebermos inseridos em uma estrutura social que nos leva a uma guerra conosco mesmos, na qual nos auto violentamos a ponto de nos encontrarmos à beira de um “infarto psíquico” ou de um “infarto da alma”, para utilizarmos as expressões de Han[8]. Não é à toa que já adentrou o senso comum a ideia de a depressão ser o mal do nosso século. O que falta é compreendermos o quanto nossa depressão é fruto de uma violência voluntária.
Essa percepção abre novos horizontes de compreensão. Ela permite, por exemplo, que nos demos conta do quanto nossa hiperatividade é, na verdade, passiva (paradoxo da hiperatividade). Sobrecarregados de informações e afazeres, realizamos as múltiplas tarefas que nos cabem, liquidando nossos impulsos criativos. A sociedade do desempenho, que tanto cobra empreendedorismo, mata a criatividade do sujeito que corre. Han[9] aponta que, em nossa correria hiperativa, dispersamos nossa atenção em um esforço de multitarefas e perdemos nossa capacidade de atenção profunda, que é pressuposto das criações culturais. Nossos movimentos variam entre o andar, o correr e o cavalgar. Mas nenhum é um movimento novo. Trata-se de movimentos lineares, retos, que se diferenciam apenas por serem mais ou menos acelerados. São “[p]ura inquietação [que] não gera nada de novo. Reproduz e acelera o já existente”. A atividade incessante aniquila a criatividade.
Contra essa hiperatividade passiva, propõe o autor que criemos espaço para o repouso, o tédio e a contemplação. O repouso nos dá tempo — tempo para pensar e para criar. É assim que nos apercebemos de novos movimentos que, ao invés de reproduzirem o andar linear, adotam a dinâmica fresca da dança. “Comparada com o andar linear, reto, a dança, com seus movimentos revoluteantes, é um luxo que foge totalmente do princípio do desempenho”.[10]Nesses novos movimentos, conseguimos fugir da lógica de reprodução hiperativa e resgatamos a criatividade. Para tanto, precisamos apenas aprendermos a parar de correr.
No século XVI, La Boétie já constatava que a força da tirania provinha da servidão fornecida voluntariamente ao tirano. Por conseguinte, para enfraquecer os tiranos, “basta não lhes dar nada e não lhes obedecer, sem combatê-lo ou atacá-lo, e eles ficam nus e são derrotados”[11]. Na sociedade do desempenho, permitirmo-nos o repouso é uma atitude revolucionária. É um exercício de desobediência aos imperativos tirânicos de produção que nos impomos. Se quisermos superar nossa condição de exaustos-e-correndo-e-dopados, basta não lhe darmos mais o combustível da hiperatividade incessante. Se a servidão é voluntária, a autonomia também o é.
Lucas de Melo Prado é Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Piauí – UFPI. Professor de Direito Humanos, Filosofia Geral e Filosofia Jurídica na Faculdade Avantis.
Bibliografia
BRUM, Eliane. Exaustos-e-correndo-e-dopados. El País, 4 jul. 2016. Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2016/07/04/politica/1467642464_246482.html>. Acesso em: 9 fev. 2017.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015. Título original: Müdigkeitsgesellschaft.
LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso da servidão voluntária. Tradução de Casemiro Linarth. São Paulo: Martin Claret, 2009. Título original: Discours de la servitude volontaire.
SIEYÈS, Emmanuel Joseph. Qu’est-ce que le tiers état? 3. ed. Paris: Ed. du Boucher, 2002. Disponível em: <http://www.leboucher.com/pdf/sieyes/tiers.pdf>. Acesso em: 9 fev. 2017.
Referências
[1] LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Martin Claret, 2009. p. 36.
[2] Ibid.
[3] HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
[4] BRUM, Eliane. Exaustos-e-correndo-e-dopados. El País, 4 jul. 2016. Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2016/07/04/politica/1467642464_246482.html>. Acesso em: 9 fev. 2017.
[5] HAN, Byung-Chul. op. cit. p. 29.
[6] Ibid. p. 30.
[7] SIEYÈS, Emmanuel Joseph. Qu’est-ce que le tiers état? 3. ed. Paris: Ed. du Boucher, 2002. Disponível em: <http://www.leboucher.com/pdf/sieyes/tiers.pdf>. Acesso em: 9 fev. 2017. Tradução nossa. Texto original: Nous avons trois questions à nous faire. 1º Qu’est-ce que le Tiers état ? — TOUT. 2º Qu’a-t-il été jusqu’à présent dans l’ordre politique ? — RIEN. 3º Que demande-t-il ? — À ÊTRE QUELQUE CHOSE.
[8] HAN, Byung-Chul. op. cit. Respectivamente p. 20 e 71.
[9] Ibid. p. 31-35. Citação direta: p. 34.
[10] Ibid. p. 35.
[11] LA BOÉTIE, Étienne de. op. cit. p. 37.