Manifesto assinado por 600 cientistas pede que Europa pare de ‘importar desmatamento’ do Brasil
Os sistemas do Projeto de Monitoramento do Desmatamento da Amazônia Legal por Satélite (Prodes) registraram no fim de 2018 um aumento de 13,7% do desmatamento da Amazônia em relação aos 12 meses anteriores – o maior número registrado em dez anos.
Por BBC
Floresta Nacional de Itaituba I — Foto: Reprodução / ICMBio
A edição de sexta-feira (26) da revista Science traz uma carta assinada por 602 cientistas de instituições europeias pedindo para que a União Europeia (UE), segundo maior parceiro comercial do Brasil, condicione a compra de insumos brasileiros ao cumprimento de compromissos ambientais.
Em linhas gerais, o documento faz três recomendações para que os europeus continuem consumindo produtos brasileiros, todas baseadas em princípios de sustentabilidade. Pede que sejam respeitados os direitos humanos, que o rastreamento da origem dos produtos seja aperfeiçoado e que seja implementado um processo participativo que ateste a preocupação ambiental da produção – com a inclusão de cientistas, formuladores de políticas públicas, comunidades locais e povos indígenas.
O grupo de cientistas tem representantes de todos os 28 países-membros da UE. O teor da carta ecoa preocupações da Comissão Europeia – órgão politicamente independente que defende os interesses do conjunto de países do bloco político-econômico – que há cerca de quatro anos vem estudando como suas relações comerciais impactam o clima mundial.
Pesquisador de questões de uso do solo, políticas de mitigação climática, combate ao desmatamento e cadeias produtivas, o brasileiro Tiago Reis, da Universidade Católica de Louvain, é um dos autores da carta.
Em entrevista à BBC News Brasil, ele afirmou que a publicação do texto tem como objetivo mostrar às instituições europeias que a comunidade científica entende a questão como “prioritária e extremamente relevante”.
“A iniciativa é importante, sobretudo neste momento em que sabemos que a Comissão Europeia está estudando o assunto e formulando uma proposta de regulação para a questão da ‘importação do desmatamento'”, disse o cientista.
O artigo foi divulgado nesta quinta-feira. Procurado pela reportagem da BBC News Brasil, o Ministério do Meio Ambiente ainda não respondeu ao pedido de entrevista sobre o tema.
Sustentabilidade e direitos humanos
“Exortamos a União Europeia a fazer negociações comerciais com o Brasil sob as condições: a defesa da Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas; a melhora dos procedimentos para rastrear commodities no que concerne ao desmatamento e aos conflitos indígenas; e a consulta e obtenção do consentimento de povos indígenas e comunidades locais para definir estrita, social e ambientalmente os critérios para as commodities negociadas”, diz a carta veiculada no periódico científico.
A carta ressalta que a UE comprou mais de 3 bilhões de euros de ferro do Brasil em 2017 – “a despeito de perigosos padrões de segurança e do extenso desmatamento impulsionado pela mineração” – e, em 2011, importou carne bovina de pecuária brasileira associada a um desmatamento de “mais de 300 campos de futebol por dia”.
Segundo dados do Ministério da Economia, as exportações para a UE representaram 17,56% do total do Brasil em 2018 – um total de mais de US$ 42 bilhões, com superávit de US$ 7,3 bilhões. A exportação de carne responde por cerca de US$ 500 milhões deste total, minério de ferro soma quase US$ 2,9 bilhões e cobre, US$ 1,5 bilhão.
De acordo com dados divulgados em novembro pelo ministérios do Meio Ambiente e da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, a Amazônia enfrenta índices recordes de desmatamento.
Os sistemas do Projeto de Monitoramento do Desmatamento da Amazônia Legal por Satélite (Prodes) registraram um aumento de 13,7% do desmatamento em relação aos 12 meses anteriores – o maior número registrado em dez anos. Isso significa que, no período, foram suprimidos 7.900 quilômetros quadrados de floresta amazônica, o equivalente a mais de cinco vezes a área do município de São Paulo.
A principal vilã é a pecuária. Estudo realizado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) em 2016 apontou que 80% do desmatamento do Brasil se deve à conversão de áreas florestais em pastagens.
Atividades de mineração respondem por 7% dos tais danos ambientais.
Principal autora do texto, a bióloga especialista em conservação ambiental Laura Kehoe, pesquisadora da Universidade de Oxford, acredita que, como forte parceria comercial, a Europa é corresponsável pelo desmatamento brasileiro.
“Queremos que a União Europeia pare de ‘importar o desmatamento’ e se torne um líder mundial em comércio sustentável”, disse ela. “Nós protegemos florestas e direitos humanos ’em casa’, por que temos regras diferentes para nossas importações?”
“É crucial que a União Europeia defina critérios para o comércio sustentável com seus principais parceiros, inclusive as partes mais afetadas, neste caso as comunidades locais brasileiras”, afirmou a bióloga conservacionista Malika Virah-Sawmy, pesquisadora da Universidade Humboldt de Berlim.
A carta dos cientistas apresenta preocupações, mas a aplicação dos tais compromissos como condições para tratativas comerciais depende de regras a serem criadas pela Comissão Europeia. Se o órgão acatar as sugestões, será preciso definir de que maneira o Brasil – e outros parceiros comerciais da UE – precisaram criar organismos e estabelecer as métricas para o cumprimento das exigências.
Medidas do governo Bolsonaro
De acordo com o brasileiro Tiago Reis, foram dois meses de articulação entre os cientistas europeus para que a carta fosse consolidada e os signatários, reunidos.
“Criamos o texto acompanhando a evolução do novo governo brasileiro. Estávamos preocupados com as promessas de campanha, mas quando essas promessas passaram a ser concretizadas, com edição de decretos, decidimos que precisávamos fazer algo”, disse ele.
“Existe, hoje, um discurso no Brasil que promove a invasão de terras protegidas e o desmatamento. Isso gerou sinais de alerta na comunidade científica internacional.”
A carta publicada pela Science ainda afirma que o governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL) trabalha “para desmantelar as políticas anti-desmatamento” e ameaça “direitos indígenas e áreas naturais”. Além de ser assinada pelos 602 cientistas europeus, a carta tem o apoio de duas entidades brasileiras, que juntas representam 300 povos indígenas: a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.
Logo no dia 2 de janeiro, primeiro dia útil do mandato, Bolsonaro publicou decretos transferindo órgãos de controle ambiental para outras pastas, reduzindo a atuação do Ministério do Meio Ambiente.
O Serviço Florestal Brasileiro, por exemplo, foi realocado no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – pasta comandada por Tereza Cristina, ligada à bancada ruralista. Outros três órgãos foram cedidos para o Ministério do Desenvolvimento Regional.
A incumbência de demarcar terras indígenas, antes sob responsabilidade da Fundação Nacional do Índio (Funai), também foi transferida para o Ministério da Agricultura. A própria Funai foi remanejada. Antes vinculada ao Ministério da Justiça, acabou subordinada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado por Damares Alves.
Mais recentemente, funcionários do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) têm sido alvo de exonerações.
Na semana passada, o Ibama arquivou processos contra a produção de soja em áreas protegidas em Santa Catarina. E o próprio presidente Bolsonaro, via redes sociais, desautorizou no início deste mês operação em andamento contra a exploração ilegal de madeira em Rondônia.