“O EFEITO BORBOLETA”: ECOLOGIA E
TEOLOGIAS FEMINISTAS DA LIBERTAÇÃO*
Teresa Martinho Toldy**
Resumo: as mulheres e as crianças são as principais vítimas dos desequilíbrios ecológicos geradores de formas de pobreza extrema. Não basta constatar a
existência destas situações: é preciso reconhecer as interligações existentes
entre formas de injustiça, mas também entre formas de libertação. É preciso
construir teologias feministas que procurem “ecologias de saberes e de práticas” de emancipação
Palavras-chave: Ecofeminismo. Fome. Sede. Ecologia de Saberes. Teologias Feministas.
O século XXI parece ter-se iniciado não sob o signo do cumprimento progressivo dos chamados “objetivos do Milênio” (erradicar a pobreza extrema e a
fome, alcançar o ensino primário universal, promover a igualdade de género
e a autonomização da mulher, reduzir a mortalidade das crianças, melhorar a
saúde materna, combater o VIH/SIDA, a malária e outras doenças, garantir a
sustentabilidade ambiental, criar uma parceria global para o desenvolvimento1
),
mas sob o signo do terror, do descalabro financeiro e do “pecado organizado”,
como, em meados do século XX, a célebre poetisa portuguesa Sophia de Mello
Breyner chamou ao seu tempo. O objetivo de acabar com a pobreza até 2015,
colocado pela ONU, é uma miragem:
Mais de uma em cada quatro pessoas continua a viver em dia em condições
de extrema pobreza, muitas em países de rendimento médio. Dois terços dos
–––––––––––––––––
* Recebido em: 25.06.2013. Aprovado em: 10.12.2012.
** Doutora em Teologia pela Philosophisch-theologische Hochschule Sankt-Georgen (Frankfurt – Alemanha), Professora Associada com Agregação em Estudos Sociais da Universidade
Fernando Pessoa (Porto/Portugal), investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal) e coordenadora do Observatório para a Política da Diversidade
Cultural e Religiosa na Europa do Sul, do mesmo centro. E-mail: toldy@ces.uc.pt
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recursos naturais vitais para a sobrevivência do ser humano estão em declínio.
Em 2030, o mundo precisará de mais 50% de comida, mais 45% de energia e
mais 30% de água (UN WOMEN ANNUAL REPORT, 2011-2012, p. 5).
Esta situação constitui já hoje uma realidade para milhões de seres humanos que não
dispõem de nenhuma destas três coisas. As alterações climáticas e as injustiças
estruturais têm agravado cada vez mais o fosso existente entre países ricos e países
pobres, mas também entre pobres e ricos dentro de países ricos. Está em causa um
desenvolvimento sustentável, isto é, um presente que não comprometa o futuro.
As mulheres (e as crianças) encontram-se entre os grupos populacionais mais pobres
e discriminados. Segundo o mesmo relatório da ONU (2011-2012, p. 5):
Cerca de mil milhões de mulheres continuam a estar muito aquém do seu potencial contributo económico devido a obstáculos nas tomadas de decisão, nos
mercados de trabalho, nos serviços financeiros, na educação e na formação,
entre outras áreas.
Contudo, não basta constatar a existência destas situações: é preciso reconhecer as
interligações existentes entre formas de injustiça, mas também entre formas
de libertação. É preciso construir teologias feministas que procurem ‘ecologias de saberes e de práticas’ de emancipação. O presente texto visa refletir
sobre possibilidades e critérios para a articulação de teologias feministas que
articulem, numa ecologia de saberes, uma leitura dos problemas ecológicos e,
em particular, dos seus impactos sobre as mulheres centrando-se na relação
destes problemas com os direitos humanos. Esta articulação há de superar
‘o perigo de uma história única’ e de interpretações da ecologia, associada
à ‘mulher’ como categoria abstrata, essencializada, mas dissociada das mulheres concretas. O desenho de uma teologia feminista da libertação que se
queira numa perspetiva da ecologia dos saberes terá de partir das vozes de
mulheres do Sul global, escutando-as.
SITUAÇÃO DAS MULHERES: AS QUESTÕES ECOLÓGICAS SÃO
QUESTÕES DE DIREITOS HUMANOS
Segundo dados recentes também da ONU2
, “as mulheres carregam um fardo desproporcionado da pobreza do mundo”. Elas estão mais expostas do que os homens
a situações de pobreza, dadas as discriminações sistemáticas que sofrem na
educação, na saúde, no emprego e no controlo da propriedade. Esta situação
tem implicações na sua capacidade de se proteger da violência, bem como
no seu papel nas tomadas de decisão.
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Mais acrescenta a ONU que, de acordo com algumas estatísticas, as mulheres representam 70% dos pobres existentes no mundo. A discrepância entre os
salários dos homens e das mulheres era de 17%, em 2008. No que diz respeito à saúde, calcula-se que, atualmente, metade dos infetados com HIV
sejam mulheres, sobretudo na África Subsaariana. Muitas destas situações
estão associadas a violência e exploração sexual, flagelos aos quais as mulheres estão mais expostas. Também no que diz respeito à paz e segurança,
verifica-se que, embora as mulheres continuem a desempenhar um papel
residual nos combates e nas guerras, estão entre as suas principais vítimas:
70% dos feridos em conflitos contemporâneos são civis, na sua maioria,
mulheres e crianças. Apesar disso, as mulheres continuam a estar fora das
mesas de negociação em situações de conflito que as atingem a elas e aos
seus filhos de forma particular.
Quanto ao envolvimento das mulheres na governação democrática, apesar de haver
um número crescente de membros do sexo feminino nos parlamentos e nos
governos, a ONU estima que, caso não haja nenhuma intervenção positiva (por
exemplo, sob a forma de quotas), as mulheres só atingirão uma percentagem
de 40% de participação na vida política no fim do século XXI.
Também na Europa Comunitária, apesar dos progressos alcançados, continuam a
verificar-se situações de discriminação das mulheres. Assim, na Declaração
da Comissão Europeia (2010) por ocasião do Dia Internacional da Mulher de
20103
, comemorativa dos quinze anos da adoção da Declaração da Plataforma
de Ação da Quarta Conferência Mundial das Nações Unidas sobre as Mulheres e dos trinta anos da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra as Mulheres, reconhece-se tanto a persistência de
formas de discriminação em nível económico, do emprego, salarial (as mulheres ganham, em média, menos 18% do que os homens) e na participação
das mulheres nos processos de tomada de decisão, como da violência de género. De acordo com a Comissão Europeia, as mulheres estão mais expostas
do que os homens ao risco da pobreza e da exclusão nos países europeus:
segundo dados de 2011 relativos aos países da União Europeia, “55.7 milhões
(23%) de homens experimentaram pobreza e exclusão” contra “63.8 milhões
(25.2%) de mulheres” (COM (2013) 271 final, p. 20).
As situações mais gritantes estão relacionadas com a própria segurança alimentar.
Segundo dados da FAO4
, há, no mundo, cerca de um milhar de milhão de
pessoas subnutridas e morrem anualmente de fome cerca de três milhões de
crianças, que não chegam a completar os cinco anos de idade. Ora, ainda de
acordo com este organismo da ONU, “as mulheres desempenham um papel
decisivo na segurança alimentar do agregado familiar, na diversidade dietética
e na saúde infantil”5
. O desrespeito pelos direitos humanos das mulheres, no
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que diz respeito ao acesso a terra, à educação, a cuidados de saúde (incluindo
na gravidez), a órgãos de decisão, tem, pois, um impacto desastroso sobre a
sua segurança alimentar, sobre a dos seus filhos e, consequentemente, sobre
todos. Quando são as mulheres a controlar o orçamento familiar, as possibilidades de sobrevivência das crianças aumentam 20%.
Uma outra questão relacionada, aliás, também com esta, é a da água. Segundo dados
também da ONU (2005), o mundo enfrenta uma “crise da água” – traduzida
na impossibilidade, dificuldade ou inibição violenta do acesso a água potável, na falta de qualidade da água para cozinhar, nos efeitos da poluição e
das alterações climatéricas – que agrava e compromete o futuro de milhões
de seres humanos, sobretudo dos mais pobres. Ora, mais uma vez, tal como
acontece com a questão alimentar, associada, aliás, diretamente ao problema
da água, as mulheres são consideradas pela ONU como as mais atingidas
(juntamente com as crianças), já que são “as utilizadoras primordiais da ‘água
em contexto doméstico’” (UN, 2005, p. 2).
Existe uma relação direta entre pobreza, fome e sede e entre todos estes flagelos e
opções económicas e políticas. Como afirma a FAO6
:
As causas da fome a nível mundial – incluindo a pobreza rural, o crescimento
da população e a degradação ambiental – são exacerbadas pela desaceleração
da economia global, por preços voláteis dos bens alimentares e pelo impacto
das alterações climatéricas.
A relação existente entre estes diversos problemas-limite aponta para a necessidade de
equacionar a ecologia em várias perspetivas, que não só a ‘verde’. A fome e a
sede resultam de modelos político-económicos desumanos: como bem lembra
Jean Ziegler, na sua obra intitulada “Destruction massive. Géopolitique de la
faim” (2011), os seres humanos são os responsáveis pela fome e poderiam
acabar com ela, se quisessem. Segundo Ziegler, os mecanismos e os raciocínios económicos que levam a que a população na Suíça, por exemplo, não
tenha fome são os mecanismos e raciocínios geradores da não-nutrição no
Sul global (e nas ‘ilhas’ do Sul no Norte global). Estes mecanismos consistem
numa distribuição brutalmente desigualitária dos recursos e no silenciamento
das vozes daqueles que são deixados fora do banquete.
Por isso, em última análise, o desenvolvimento sustentável constitui um desafio de
equilíbrio entre a natureza e os seres humanos, mas também (e principalmente) entre os seres humanos, pois os desequilíbrios existentes entre estes têm
um impacto desastroso sobre o planeta: ecologia é justiça ou, dito de outro
modo, pelas palavras de Leonardo Boff e de Miguel de Escoto na Declaração
Universal do Bem Comum da Terra e da Humanidade (2000):
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[…] é preciso renovar e articular organicamente o contrato natural com o
contrato social, que ganhou um papel de exclusividade e propiciou o antropocentrismo e instaurou estratégias de apropriação e dominação da natureza e da
Mãe Terra, já que o modo de produção vigente nos últimos séculos e atualmente
globalizado não conseguiu satisfazer as demandas vitais dos povos, gerando,
ao contrário, um fosso profundo entre ricos e pobres.
É necessária uma ecologia que vá ao fundo de questões estruturais, económicas, geradoras da pobreza e da miséria de dois terços da humanidade. As questões
ecológicas são questões dos direitos humanos. Equacionar questões de género
conjuntamente com questões ecológicas é, pois, relacionar estas duas questões com a problemática dos direitos humanos, da opressão e da libertação.
O EFEITO BORBOLETA – ESTAMOS TODAS INTERLIGADAS: NA
OPRESSÃO E NA LIBERTAÇÃO
De acordo com a versão popular da teoria do ‘efeito borboleta’, de Edward Norton
Lorenz7
, o bater das asas de uma borboleta na China pode causar um tufão
nos Estados Unidos. Aplicando o ‘efeito borboleta’ ao tema que nos ocupa,
poderíamos dizer que, se as relações de interdependência entre justiça e
ecologia passam pelo reconhecimento da existência de cadeias de opressão à
escala global, também passam pelo reconhecimento e pelo desenvolvimento
de redes de libertação à mesma escala, que façam irromper a humanidade
“enquanto grandeza coletiva”, para utilizar as palavras de Alberto da Silva
Moreira (2011, p. 236). Este constitui um dos maiores desafios colocados a
toda a humanidade e, portanto, também, a todas as comunidades religiosas
do mundo (questão à qual regressaremos mais adiante):
Fazemos hoje a experiência do mundo como “um único lugar” (R. Robertson),
sabemos e percebemos que todos somos parte da mesma família humana e
compartilhamos o mesmo planeta, casa de toda a biosfera, agora terrivelmente
ameaçada na sua subsistência pela ação predatória do homem. Esta questão
desafia não só a Igreja Católica, mas todas as comunidades religiosas do mundo. Ela tende a se tornar aguda: afinal, qual é a contribuição que as religiões
mundiais estão dando para a paz e a superação dos conflitos, para a aceitação
e a convivência com o diferente, para resolver questões fundamentais, como a
pobreza e a exclusão social, a violência e a agressão aos direitos humanos, a
degradação ambiental e o uso responsável dos recursos da terra? O enfrentamento dessas questões exigirá um trabalho conjunto entre diferentes tradições
religiosas (MOREIRA, 2011, p. 236).
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O ‘efeito borboleta’, quando aplicado simbolicamente à questão que aqui nos ocupa,
relaciona-se também com os impactos dos comportamentos relacionados
com o uso e a gestão dos recursos naturais nas diversas regiões do planeta.
Lena Partzsch (2012), num artigo publicado no número da Revista Concilium dedicado ao tema da água, chama a atenção para a cadeia de injustiça
e delapidação da água doce e potável resultante de diversos fatores. Se
atendermos ao facto de apenas 10% do consumo da água a nível mundial
ocorrer no contexto doméstico e mais de 70% resultar da produção de
alimentos, na agricultura, e 20%, do uso na indústria; se atendermos ao
facto de, para produzir um quilo de pão, serem necessários 1300 litros de
‘água virtual’ (isto é, a água necessária para a produção); se atendermos
ao facto de, segundo estes cálculos, nos lares alemães serem consumidos
diariamente (para beber) 130 litros de água por cabeça, contra 5158 litros
de água virtual; se atendermos ao facto de os produtos químicos utilizados
na agricultura poluírem a água e, frequentemente, terem de ser os próprios
consumidores a despoluí-la, e não os responsáveis pela poluição; se atendermos ao facto de a globalização da economia significar que os alimentos
são cada vez mais raramente consumidos onde são produzidos, o que leva
a que a água virtual utilizada na Europa seja importada de Africa e o que
contribui para a escassez de água naquele continente, bem como para a sua
sobreutilização e a consequente poluição das fontes; se atendermos a todos
estes factos, compreenderemos o ‘efeito borboleta’ gerador da miséria de
dois terços da humanidade. Lena Partzsch, citando um relatório de 2005
do Instituto de Wuppertal (2012, p. 486), dá um exemplo claro de como o
estilo de vida nos países ricos e os modelos económicos que o alimentam e
reproduzem têm custos para os mais pobres, aliás, são, em grande medida,
à custa dos mais pobres:
O Lago Naivasha, no Quénia, está quase seco devido à produção de flores
para exportação com uso intensivo de água. O lago dá de beber a mais de 350
espécies de aves, a hipopótamos, búfalos, macacos e outros animais raros e
ainda serve de bebedouro aos animais dos nómadas Massai.
Os amantes de flores, que compram flores importadas do Quénia, estão longe de saber
os impactos que este seu gosto tem para as populações e ecossistema locais.
A consciencialização da existência de mecanismos de interdependência na opressão
e na libertação deverá começar, antes de mais, pela desconstrução crítica das
histórias de sede e também de fome centradas na ideia de que estas resultam,
pura e simplesmente, de catástrofes naturais. Aliás, pode mesmo acontecer
haver fome em zonas com recursos. O problema está no facto de não serem as
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populações que vivem nessas zonas a usufruir dos alimentos ou dos produtos
que serão transformados em alimentos. Como expressa Santos (2008, p. 4-5):
Não raro, pessoas e grupos passam fome porque todo o seu esforço de produção não
é para gerar o que precisam, mas para alimentar uma engrenagem cujas escolhas
lhe escapam. O fato de ser um elo nesta cadeia nem sempre garante condições
mínimas de sobrevivência, como vemos no caso da produção de morangos no Quénia ou da soja e da cana no Brasil. Nem os morangos se destinam aos quenianos,
nem a soja tem a função de alimentar os brasileiros – a soja brasileira, aliás, tem
como destino o mercado europeu e sua principal função é a de alimentar frangos.
SUPERAR “O PERIGO DE UMA HISTÓRIA ÚNICA”
A conversão do olhar reconhecedor da existência do ‘efeito borboleta’ deverá ainda
incluir um segundo passo, o da “superação de uma história única”, de que
fala Chimamanda Adichie (s/d, online). Ao chegar aos Estados Unidos, vinda
da Nigéria, a sua colega de quarto ficou chocada, porque ela não correspondia ao clichée da ‘africana pobre’. Atentemos na forma como Chimamanda
Adichie descreve essa situação:
Eu tinha 19 anos. Minha colega de quarto americana ficou chocada comigo.
Ela perguntou onde eu tinha aprendido a falar inglês tão bem e ficou confusa
quando eu disse que, por acaso, a Nigéria tinha o inglês como sua língua oficial. Ela perguntou se podia ouvir o que ela chamou de minha “música tribal”
e, consequentemente, ficou muito desapontada quando eu toquei minha fita
da Mariah Carey. […] Ela presumiu que eu não sabia como usar um fogão.
O que me impressionou foi que: ela sentiu pena de mim antes mesmo de ter
me visto. Sua posição padrão para comigo, como uma africana, era um tipo
de arrogância bem intencionada, piedade. Minha colega de quarto tinha uma
única história sobre a África. Uma única história de catástrofe. Nessa única
história não havia possibilidade de os africanos serem iguais a ela, de jeito
nenhum. Nenhuma possibilidade de sentimentos mais complexos do que piedade.
Nenhuma possibilidade de uma conexão como humanos iguais.
Numa “história única”, os “outros” são apenas agentes passivos de “um destino de
miséria” da qual não serão capazes de sair, a não ser – na melhor das hipóteses definidas por um Norte ‘caridoso’ – através da solidariedade dos países
ricos, nos termos ditados por estes últimos. Encarcerar os “outros” numa
“história única” constitui uma forma de reproduzir os mecanismos de poder.
Como recorda Adichie:
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É impossível falar sobre única história sem falar sobre poder. Há uma palavra,
uma palavra da tribo Igbo, que eu lembro sempre que penso sobre as estruturas
de poder do mundo, e a palavra é “nkali”. É um substantivo que livremente
se traduz: “ser maior do que o outro”. Como nossos mundos econômico e
político, histórias também são definidas pelo princípio do “nkali”. Como é
contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo realmente depende do poder. Poder é a habilidade de não só contar a história
de outra pessoa, mas de fazê-la a história definitiva daquela pessoa. O poeta
palestino Mourid Barghouti escreve que se você quer destituir uma pessoa, o
jeito mais simples é contar sua história, e começar com “em segundo lugar”.
Comece uma história com as flechas dos nativos americanos, e não com a
chegada dos britânicos, e você tem uma história totalmente diferente. Comece
a história com o fracasso do estado africano e não com a criação colonial do
estado africano e você tem uma história totalmente diferente.
As mulheres dos países empobrecidos e as mulheres empobrecidas nos países ricos não
são apenas vítimas. Também são agentes de transformação da realidade. Superar
“o perigo de uma história única” é fazer ressoar outras histórias sobre outras
formas de vida, outras culturas, outros mundos dentro do mundo: não há só
histórias de fome e de sede no Sul global. Também há histórias de “mulheres
heroínas”8
.
Sobretudo, é preciso deixar de falar pelas mulheres do Sul global e perceber que elas
têm voz. É necessário superar aquilo que os estudos feministas e pós-coloniais
designam como “o universalismo colonial da racionalidade ocidental” (MOHANTY, 1991), como se existisse um modelo único de equacionar o desenvolvimento e o progresso humanos, também do ponto de vista dos direitos
humanos e, mais concretamente, dos direitos das mulheres. Inscreve-se aqui,
mais uma vez, todo o debate em torno da ‘ocidentalidade’ ou não do discurso
(e das práticas) acerca dos direitos humanos e dos direitos das mulheres e
aquilo que algumas autoras designam como a marca imperial das formas de
feminismo que concebem o modelo ocidental como a única referência possível para a emancipação das mulheres, “ghetizando”, assim, as feministas
do chamado “Terceiro Mundo” (MOHANTY, 1991; SPIVAK, 1994).
Contudo, o reconhecimento do papel ativo das mulheres na alteração da sua situação
não deverá consistir na transferência, pura e simples, para elas de toda a
responsabilidade na alteração das situações de que as mesmas são vítimas.
Para que as mulheres tenham margem para alterar a sua situação, é necessário que os mecanismos económicos estruturalmente geradores de pobreza
sejam alterados. E, para tal, é também necessário que seja dada voz e vez às
mulheres para terem um papel ativo nas decisões a esse nível.
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Além disso, é igualmente necessário superar criticamente formas de equacionar
problemas globais que partem do pressuposto de que o único conhecimento
válido é o conhecimento produzido nos países do Norte ou o conhecimento
produzido nos países do Sul de acordo com os cânones de racionalidade cartesiana que dita os parâmetros da ‘ciência moderna’. Como recorda Santos
(2006, p. 143), para superar a hegemonia das formas de conhecimento do
Norte global, é preciso avançar para uma “ecologia de saberes”, isto é, para
“um conjunto de epistemologias que partem da possibilidade da diversidade
e da globalização contra-hegemónica e pretendem contribuir para as credibilizar e fortalecer”.
A ecologia dos saberes tem de ser gerada ecologicamente, isto é, “com a participação
de diferentes saberes e seus sujeitos” (SANTOS, 2006, p. 146). Não se trata
de uma solidariedade em esquema hegemónico, portanto assimétrico – é
necessário justiça, tanto praxiológica, como epistemológica. É necessário
fazer emergir formas de conhecimento da realidade que superam a “monocultura” da ciência moderna e geram saberes ecológicos, isto é, resultantes
de “convergências múltiplas” (SANTOS, 2006, p. 149). A construção de
uma ecologia dos saberes passa pelo questionamento relativo à “natureza e
avaliação das intervenções no real”. E este coloca-se as seguintes perguntas:
Como identificar a perspetiva do oprimido nas intervenções no real ou na
resistência a eles? Como traduzir esta perspetiva em práticas de saber? Na
busca de alternativas à dominação e à opressão, como distinguir alternativas
ao sistema de opressão ou dominação de alternativas dentro do sistema ou, mais
especificamente, como distinguir alternativas ao capitalismo de alternativas
dentro do capitalismo? (SANTOS, 2006, p. 151).
CAMINHOS PARA UMA TEOLOGIA FEMINISTA DA LIBERTAÇÃO
NO HORIZONTE DE UMA ECOLOGIA DOS SABERES
A questão da ecologia dos saberes tem toda a pertinência quando se fala de conhecimento sobre as múltiplas realidades de mulheres ou sobre conhecimentos
de mulheres em contexto diferentes ou ainda quando se fala da produção de
conhecimento sobre realidades globais a partir de redes de saberes locais,
articulados entre si, conscientes das consequências e dos impactos das realidades locais sobre o global, mas também críticos de formas de conhecimento
que, globalizando realidades locais, conseguiram impor-se hegemonicamente
ao mundo, esmagando ou subalternizando outras realidades locais.
O desafio da ecologia dos saberes coloca-se também na própria teologia. O que
significa a superação da “história única” na teologia, mais concretamente,
102 , Goiânia, v. 11, n. 2, p. 93-108, jul./dez. 2013.
na teologia feminista? O que significa uma ecologia de saberes teológicos
feministas? Como deverão as teologias enfrentar os problemas relacionados
com a ecologia enquanto desrespeito pelos direitos humanos, adotando uma
perspetiva epistemológica e praxiológica que seja ecológica? Deixemo-nos
guiar por vozes de mulheres do Sul.
Segundo Pui-Lan (2005, p. 211), é preciso começar, antes de mais, por reconhecer
que “a construção da esperança das mulheres em relação a si próprias e à
natureza depende em grande parte da sua localização social e do seu contexto
histórico.” Quer isto dizer que pensar a relação entre género e ecologia exige,
antes de mais, analisar criticamente os impactos sobre as mulheres no Sul
daquilo que a autora equaciona como “as três vagas da globalização”. Assim,
de acordo com Pui-Lan, para as mulheres nos países que ela designa como
do “Terceiro Mundo”, o colonialismo (a primeira vaga de globalização),
significou o controlo dos seus corpos (do próprio “Novo Mundo” como
um corpo a conquistar, na fantasia dos colonizadores), da sua sexualidade
e capacidade reprodutora como chave para o empreendimento colonial,
gerando uma mestiçagem que assegurou população em circunstâncias de
doença e de genocídio. Mas o colonialismo também significou a violação
da terra e a perda de poder económico e familiar das mulheres, através da
alteração dos mercados.
A segunda vaga da globalização, iniciada após a Segunda Guerra Mundial, visou
auxiliar os países pobres numa perspetiva de progresso económico de tipo
capitalista. Muitos dos programas de auxílio passaram por campanhas de
controlo da natalidade (muitas vezes, através de esterilizações forçadas).
Havia a ideia de que a pobreza era devida aos elevados níveis de fertilidade.
O progresso surgiria, então, mais uma vez, através dos corpos das mulheres,
desta vez, controlados sob o signo da esterilização. Além disso, os programas
de envolvimento das mulheres como agentes económicas e trabalhadoras
em grandes unidades de produção alimentar significou, muitas vezes, contraditoriamente (ou não) o empobrecimento maior ainda dos seus agregados
familiares, visto que o que era (e é) produzido, muito frequentemente, não é
consumido pelos que produzem diretamente (como já vimos).
A terceira vaga da globalização constitui o que Pui-Lan (2005, p. 215) designa por
“imperialismo verde”, isto é, o controlo e privatização das necessidades
básicas, o que afeta as mulheres de forma brutal, como já mencionado no
exemplo da água.
Como interpreta o discurso feminista estas realidades? Segundo a mesma autora, a
partir dos anos 70, surgiram duas tendências. Uma delas denuncia a relação
entre mulher e natureza como perpetuação do determinismo biológico que
subalterniza a mulher (pense-se, por exemplo, em Simone de Beauvoir, 1949).
103 , Goiânia, v. 11, n. 2, p. 93-108, jul./dez. 2013.
A outra perspetiva celebra a identificação entre as mulheres e a natureza
reivindicando a proximidade da mulher com a terra e a valorização do corpo
feminino e dos seus ritmos – por exemplo, Mary Daly (1978). Ora, segundo
pensa Pui-Lan (2005, p. 223), mais relevante e mais promissor do que começar por discutir categorias filosóficas, será “começar pelos corpos reais de
mulheres que experimentaram a conquista, a escravidão e a colonização no
passado e que continuam a estar sujeitas ao neocolonialismo, ao militarismo
e à exploração económica no mercado global.” Quer isto dizer que perspetivar a questão das mulheres e da natureza a partir da experiência concreta de
milhões de mulheres do Terceiro Mundo significa reconhecer que a relação
entre mulher e natureza é complexa, multidimensional e, sobretudo, constitui
um grito por justiça. Ou, dito de outra forma, equacionar género e ecologia
sem equacionar conjuntamente a questão da justiça poderá, inclusivamente,
reforçar os estereótipos que procuram legitimar a subalternização da mulher:
a “especial ligação” das mulheres com “a natureza” e com a vida é invocada
frequentemente pelos setores religiosos mais conservadores (nomeadamente,
católicos) para justificar a permanência das mulheres no mundo privado, por
contraposição ao universo “público”, que será entendido como “próprio dos
homens” (HENRIQUES; TOLDY, 2012).
Que esperança haverá, então, para a construção de saberes teológicos feministas que
sejam simultaneamente capazes de dar voz ao corpo das mulheres, sem cair
numa estetização do biológico, e de dar corpo, na sua reflexão, às vozes das
mulheres que, passando pelas múltiplas subjugações do seu corpo e do corpo
do seu povo, se rebelam contra a dupla vitimação – daqueles que as vitimizam
e daqueles que as consideram apenas como vítimas?
Pui-Lan (2005, p. 228) denuncia quatro aspetos daquilo que considera ser “a esperança escatológica” das mulheres do Terceiro Mundo. O primeiro relaciona-se
com a convicção que muitas mulheres nestes contextos possuem de que as
suas tradições, nas quais não ocorreu a separação entre cultura e natureza,
podem ser salvíficas para o planeta. Numa perspetiva ecológica dos saberes,
isto significa procurar a integração de várias formas de espiritualidade. Tal
não significa necessariamente um sincretismo, mas sim o reconhecimento
de que o Espírito paira sobre o mundo e não é propriedade de nenhuma instituição religiosa.
Em segundo lugar, a esperança reside também na resistência e numa luta geradora de
novas formas de sobrevivência. Esta coloca o presente numa corrente de vida
que vem do passado e que se projetará no futuro de uma forma respeitadora
das gerações anteriores, mas também das gerações futuras.
Em terceiro lugar, as mulheres no Terceiro Mundo alimentam a esperança de poder
trabalhar em solidariedade com as mulheres do primeiro mundo, embora
104 , Goiânia, v. 11, n. 2, p. 93-108, jul./dez. 2013.
Pui-Lan, citando Smith (2005, p. 228-229), advirta contra aquilo a que ela
chama “o síndrome de ‘querer tornar-se índia’”, no qual “as pessoas querem
aprender segredos e cerimónias nativas, sem se responsabilizarem pelo racismo branco”.
Por fim, segundo a mesma autora, as mulheres do Terceiro Mundo sentem que não
lutam sozinhas, “porque a frágil teia da vida continua a manter-se” (PUI-LAN,
2005, p. 229). É essa esperança que as leva a “procurarem os fragmentos
libertadores da nossa herança para que possamos reparar a criação para as
nossas filhas e para as filhas das nossas filhas” (p. 230).
A articulação do simbólico com o sócio-económico, isto é, do significado da existência
num corpo com a consciência da existência de corpos escravizados e com
a urgência da denúncia profética, constitui-se, assim, como rumo para uma
teologia feminista da libertação na perspetiva de uma ecologia dos saberes. E
constitui-se como caminho para uma ecologia política, isto é, reivindicadora
dos direitos humanos desrespeitados nas situações de desequilíbrio ecológico – em suma, uma ecologia que interpreta os atentados contra a dignidade
humana como um “atentado ecológico”, visto que os seres humanos fazem
parte do ecossistema.
Esta articulação e esta perspetiva ecológica apelam, elas próprias, também, a uma
ecologia dos saberes teológicos, a um diálogo ecuménico, inter-religioso e
intercultural. Como afirma Nancy Cardoso Pereira, em entrevista a Moisés
Sbardelotto (2011), “fortalecer o ecumenismo é fortalecer uma teologia crítica”, já que, na sua perspetiva, “o ecumenismo é a pergunta por um outro
mundo possível. O ecumenismo é atitude, postura política diante do mundo
todo habitado.” Também na perspetiva de Tamayo (2006, p. 476): “A teologia da libertação não é assunto de uma cultura. Em todas elas há elementos
libertadores, que é necessário ativar, como há também elementos alienantes,
que devem ser erradicados”. E, se pensarmos num horizonte inter-religioso,
o desafio que se coloca, ainda segundo Tamayo (2006, p. 476), é o de “criar
uma teologia inter-religiosa da libertação que assuma as tradições emancipatórias presentes nas distintas religiões e movimentos espirituais”.
O exercício de uma teologia feminista articulada na perspetiva ecológica e tendo em
mente o horizonte ecológico da libertação, deve, contudo, estar ela própria
disposta a uma vigilância hermenêutica para não reproduzir o já mencionado
“síndrome de querer tornar-se índia”. Isasi-Diaz (2009), num texto intitulado
precisamente “Liberation Theologies for the Twenty-First Century. A Mujerista
Prolegomenon” (Teologias da libertação para o século XXI. Prolegómenos
mujeristas), chama a atenção para três aspetos que a teologia da libertação
terá de continuar a aprofundar para poder continuar a ser pertinente, incluindo
as teologias da libertação feministas. O primeiro está relacionado com a ne-
105 , Goiânia, v. 11, n. 2, p. 93-108, jul./dez. 2013.
cessidade de superar a tentação paternalista presente, do seu ponto de vista,
em algumas formulações destas teologias. A pergunta que se coloca é como
podem elas contribuir para a libertação dos pobres e oprimidos, das mulheres pobres e oprimidas. Já que ninguém liberta ninguém, mas libertamo-nos
sozinhos (como dizia Paulo Freire, 1987), pergunta Isasi-Diaz (2009, p. 117):
Até que ponto estão as teologias da libertação a permitir a emergência de novos
conhecimentos vindos daqueles que são marginalizados […]? Até que ponto é
que as teologias da libertação são uma plataforma para os pobres e oprimidos
e não explanações dos ensinamentos da igreja e daquilo que a Bíblia diz?
Segunda questão: a solidariedade. Isasi-Diaz (2009, p. 118) coloca um novo desafio:
“Não somos solidários se não compreendemos e aceitamos que os nossos
privilégios e o nosso poder – e os leitores deste artigo são, muito provavelmente, pelo menos um tanto privilegiados9
– afetam a pobreza e a opressão
daqueles que defendemos.” As teologias feministas negras e ‘mujeristas’ chamam a atenção para esta simples questão: a opressão de uma mulher branca,
do primeiro mundo, da classe média, não é igual à opressão de uma mulher
negra, no primeiro (e muito menos, no terceiro) mundo.
Terceira questão: a opção pelos pobres. Deverá dizer-se opção pelos pobres ou opção
preferencial pelos pobres? A resposta de Isasi-Diaz (2009, p. 119) é cristalina: “A opção pelos pobres não é apenas uma prioridade, é uma opção clara.
Significa que exclui a opção pelos não-pobres, pelos não-oprimidos, enquanto
pessoas não-pobres e não-oprimidas”. Uma coisa é reconhecer o amor que
Deus tem a todos, incluindo, como ela própria diz, “aos que exploram ou
marginalizam, são violentos, discriminam, dominam”. Outra coisa é dizer
que Deus opta por eles: Como opressores, não, Deus não opta por eles”.
CONCLUSÃO
A articulação de teologias feministas da libertação (incluindo ecológica) desemboca,
pois, em opções éticas fundamentadas na fé, na visão de “um novo céu e
uma nova terra” e na luta quotidiana para que não haja excluídas e excluídos
do banquete da vida, uma luta em nome de um Deus (Pai e Mãe) que não
exclui ninguém que não faça da exclusão o seu projeto de vida, e em nome
daqueles cujo sangue clama da terra (cf. Gn 4,10). A maioria desses excluídos, cujo sangue clama da terra, chamando por Deus, são mulheres. Não
é pensável um saber e uma prática ecológica que não coloque a noção de
desenvolvimento sustentável na perspetiva dos direitos humanos. No início
do terceiro milénio, sob o signo da pobreza crescente e da falência de uma
“O EFEITO BORBOLETA”: ECOLOGIA E TEOLOGIAS FEMINISTAS DA LIBERTAÇÃO*
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